Humanidades

O que estãopor trás da “Guerra do TikTok”?
No contexto da guerra entre Raºssia e Ucra¢nia, especialistas alertam que o avanço da cobertura de conflitos por meio de redes sociais como o TikTok deve ser observado com atenção
Por Denis Pacheco - 10/03/2022


Doma­nio paºblico 

Desde 24 de fevereiro, o mundo assiste ata´nito ao conflito entre a Raºssia, uma das maiores potaªncias do planeta, e a Ucra¢nia, segundo maiorpaís da Europa que, 30 anos atrás, declarou independaªncia da antiga Unia£o Sovianãtica. Embora confrontos dessa natureza infelizmente não sejam novidade, alguns dos grandes nomes envolvidos na guerra entre territa³rios seculares não possuem mais do que alguns anos de existaªncia.

No dia 6 de mara§o, a plataforma TikTok, lana§ada na China em 2016, anunciou para o mundo a suspensão de publicações em va­deo na Raºssia. A ação foi motivada por uma lei recente que prevaª até15 anos de prisão para os que divulgarem o que o governo russo considerar fake news sobre a guerra na Ucra¢nia. Nãopor acaso, o Facebook e o Twitter também foram bloqueados na Raºssia, após dias de limitação de acesso.

Ainda que o timing seja conveniente, a censura russa ao aplicativo — o TikTok estãodispona­vel em mais de 150países e 75 idiomas — não surgiu como uma causalidade da guerra, mas como o resultado de ações premeditadas. Antes da invasão, em 16 de fevereiro, as autoridades russas haviam alertado os gigantes Google, Meta, Apple, Twitter e o pra³prio TikTok que teriam atéo final do maªs para cumprir uma nova lei que exige que eles criem pessoas jura­dicas nopaís.

O objetivo da chamada “lei de desembarque” era facilitar a censura do governo russo na internet, cujo potencial tanto para derrubar, quanto para preservar democracias tem sido alvo de especulação desde a ascensão das primeiras redes sociais.

Para o professor de pós-graduação no Insper e colunista da Ra¡dio USP Carlos Eduardo Lins da Silva, o receio russo do potencial de redes como o TikTok não ésurpresa. Na ma­dia internacional, o combate com a Ucra¢nia tem sido apelidado de “Guerra do TikTok”. A alcunha foi motivada pela quantidade macia§a de va­deos distribua­dos pela rede cobrindo diversas facetas do conflito, em especial, propagandeando o lado invadido pelos russos.

“O maior número de consumidores de informações sobre a guerra tem sido via TikTok, além de outras plataformas como o Twitter e Facebook”, reforça o professor. Para ele, a retirada estratanãgica do TikTok faz sentido já que a maioria do conteaºdo na rede “provisoriamente cobre o lado da Ucra¢nia”, entretanto, se o resultado da batalha for uma invasão completa russa, os responsa¡veis pela plataforma e os seus usuários podera£o ser processados pela nova lei.

Ainda assim, a guerra entre ospaíses permanece um grande ta³pico nas redes, que, nos últimos dez anos, tem se mostrado cruciais na cobertura de guerras. Nos relatos da imprensa sobre o assunto, muito se fala sobre como as revoltas da Primavera arabe, em 2010, e a guerra civil na Sa­ria, iniciada em 2011, também utilizaram o Facebook e o Twitter para organizar protestos e transmitir cenas do ponto de vista de civis. No entanto, nos anos seguintes, essas mesmas plataformas se tornaram consideravelmente mais complexas (inclusive do ponto de vista moral), assim como os smartphones se tornaram melhores na captura e transmissão de eventos em tempo real.

E o avanço da tecnologia também facilitou seu uso indevido, tanto que catapultou a desinformação e as fake news como uma das principais preocupações de democracias em todo o mundo, inclusive no Brasil. Fato éque a maioria das grandes redes sociais ainda tem dificuldade de conter o avanço da desinformação. Para Lins da Silva, “o ponto éque essas plataformas tem sido pouco estritas no seu dever de alertar sobre inverdades. Ou simplesmente não publicar o que não se sabe que éverdade. Elas são displicentes, para dizer o ma­nimo”.

Origens do fotojornalismo

Ainda que separar o que éfalso do que éverdadeiro seja propagado como uma das grandes preocupações, tanto da parte das autoridades, quanto da parte dos usuários das redes sociais, nem sempre o design dos aplicativos favorece essa diferenciação. A capacidade de viralização de um tweet, um va­deo ou mesmo uma imagem fora de contexto éastrona´mica, e, desde o começo do século 20, quando as primeiras coberturas fotogra¡ficas de guerra estabeleceram seus protocolos, sabe-se que o poder de uma boa imagem pode moverpaíses inteiros.

Sobre isso, nas últimas semanas, uma das imagens mais marcantes da invasão da Ucra¢nia pela Raºssia éuma foto, tirada pelo fotojornalista Tyler Hicks, que mostra um soldado morto no cha£o em frente a um tanque desativado, seu corpo coberto por uma camada de neve. A foto foi publicada na primeira pa¡gina do The New York Times em 26 de fevereiro.

Outro registro do ini­cio da guerra, citado por diversas publicações, éum va­deo do TikTok, postado em 24 de fevereiro, mostrando imagens de ca¢meras de telefone e videoclipes de ma­sseis caindo sobre a cidade de Kiev como fogos de artifa­cio. O va­deo éacompanhado pela música Little Dark Age, da banda indie-pop MGMT, elemento que, embora parea§a ma³rbido, se encaixa perfeitamente nas diretrizes estanãticas do TikTok.

Ambos são faces de uma cobertura multifacetada que coloca tradições distintas em conversa e em conflito. Para a historiadora ‪Erika Zerwes, pesquisadora das origens do fotojornalismo em seu doutorado defendido na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), as origens desse tipo de cobertura envolvem, primeiramente, entender a evolução da tecnologia fotogra¡fica 100 anos atrás e as motivações por trás dos primeiros grandes nomes do campo.

Citando fota³grafos como Robert Capa, que, durante a Guerra Civil Espanhola, ocorrida entre 1936 e 1939, registrou “os indivíduos ana´nimos, muitas vezes civis e refugiados, que representavam a destruição causada pela guerra”, a especialista lembra que as ca¢meras na anãpoca “deram um salto tecnola³gico”. Por sua portabilidade, ca¢meras como a recanãm-criada Leica “possibilitaram que o fota³grafo se envolvesse bastante e estivesse junto dos soldados, bem perto da ação”.

Foi a partir dessa primeira cobertura de imagens que os fota³grafos do conflito “desenvolveram uma linguagem fotogra¡fica, a partir de evoluções técnicas, mas também a partir de um olhar que queria denunciar a barba¡rie fascista que era cometida contra umpaís que estava sendo deixado sozinho para lutar contra o fascismo mundial”, sintetiza ela.

A linguagem visual criada pelo grupo formado por Capa, Gerda Taro e David Seymour “impactou a história da fotografia e deu as bases do que se tornou o fotojornalismo moderno”, afirma.

Da televisão ao TikTok

Da Espanha em 1936 atéa Ucra¢nia hoje, muito se avançou na cobertura midia¡tica de grandes conflitos. Nãopor acaso, entre 1965 e 1975, nenhum outro evento dominou tanto os noticia¡rios da televisão americana como a guerra no Vietna£.

Considerada uma das primeiras guerras televisionadas, a cobertura do ataque no Sudeste Asia¡tico éapontada por especialistas como uma das responsa¡veis pela saa­da dos Estados Unidos do Vietna£. As imagens que viajaram o mundo mostravam, entre diversas cenas militares, vitimas e soldados perdidos em um combate cruel.

Se, na anãpoca, a imersão do grande paºblico no Vietna£ via imprensa internacional era considerada extensa, hoje, quando cada um de nostem no bolso uma janela eletra´nica que nos permite acesso em tempo real aos locais de guerra, a sensação pode ser ainda pior.

De acordo com o professor Wagner Souza e Silva, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, “obviamente, resguardados os exageros, podemos dizer que estamos fazendo uma imersão nas guerras”. Pela internet e atravanãs de nossos smartphones, “nosacabamos vivenciando ou pelo menos imaginando com mais apuro o que éuma realidade de guerra, e isso éimpressionante”.

Ao mencionar o Vietna£, o pesquisador especializado em fotografia documental, defende que “o Vietna£ foi uma guerra muito midiatizada, mas não com essa intensidade. Hoje, épossí­vel gerenciar a opinia£o pública com a força das redes sociais”.

No caso do TikTok, sua força e sucesso podem ser atribua­dos ao quanto visual e quanto instanta¢neo ele anã. A capacidade dos usuários do aplicativo de editar va­deos complexos unindo memes, música, dança e nota­cias éalgo sem precedentes.

Embora uma parcela da geração mais velha negue, sua facilidade de uso éum dos seus principais trunfos. Em comparação com outras redes que incluem va­deo em sua timeline, o TikTok éapontado como a “plataforma de va­deo ideal para moldar percepções de como um conflito estãose desenvolvendo”.

Como mencionado antes, o potencial para uso indevido, um conceito difa­cil de sintetizar por parte das próprias plataformas, émotivo de preocupação. Entretanto, para o professor, atémesmo essa preocupação deveria ser investigada com atenção. “Quando estamos falando de imagem, estamos falando sobre ambiguidade”, teoriza ele. “Temos que olhar as imagens sempre com reservas, mesmo no jornalismo.”

Sobre os casos de imagens de cobertura da atual guerra que se mostraram falsas, o pesquisador opina que mesmo as narrativas falsas possuem o que ele chama de “valor simba³lico”. “Estamos vivenciando uma certa dificuldade em saber manejar essas imagens. Então, temos que desconfiar de todas as imagens e construir nossa posição a partir de diversas fontes”, advoga ele ao apontar a importa¢ncia do conceito de literacia midia¡tica.

Para o professor, devemos “nos preocupar menos com o fato da imagem ser verdadeira ou falsa, e mais com o que estãosendo construa­do com esse repertório iconogra¡fico”.

Imprensa vs. redes sociais

Diante de uma guerra que ainda não tem previsão de fim, qual éo papel que continua a caber a  chamada ma­dia tradicional ou ma­dia de legado, como identifica Lins da Silva?

“Eles tem a obrigação institucional e anãtica da profissão de obter informações e fazer o possí­vel para que não sejam veiculadas mentiras e informações fora de contexto, que possam ser erroneamente interpretadas”, responde ele. “Apesar dos problemas, que são muitos, eles continuam sendo os canais” .

Para além disso, de acordo com o professor Wagner, “a ma­dia tradicional tem que levar em conta a realidade das redes, perceber sua importa¢ncia no jogo midia¡tico e olhar para isso não mais como um submundo”. A ideia, na opinia£o do especialista, não écompetir, mas assimilar.

Em um mundo em que as imagens continuam a mobilizar volumes cada vez maiores de pessoas, o objetivo do fotojornalismo de guerra permanece o de testemunhar; entretanto, cabe aos leitores, espectadores e usuários interpretarem o que enxergam nas diversas imagens e, em um contexto de redes sociais abundantes, se tornarem mais proficientes também na captura e difusão dessas interpretações.

 

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